Destaque Internacional - Informes de Conjuntura - Ano VII - Nos. 161-162 - Buenos Aires / Madri - Fevereiro, 2005 - Responsável: Javier González.-

5 o. Fórum Social Mundial: "diversidade", "revolução intersticial" e sonho anárquico

* Uma radiografia atualizada do chamado "movimento de movimentos" alter-globalista, suas metas, sua função dinamizadora, suas discussões estratégicas e de bastidores, seu poder real e seus calcanhares de Aquiles

*Um informe exclusivo, com entrevistas a José Saramago, Frei Betto, Leonardo Boff, Ignacio Ramonet, presidente Chávez, Alina Guevara, John Holloway, Michael Hardt, Tariq Ali, Atilio Borón, João Pedro Stédile, Ricardo Alarcón e outros participantes do FSM

Índice

Introdução

1. Frei Betto, Gramsci e Lenine:

"pressão popular" para "conquistar" o poder

2. ¿Transformar o mundo sem tomar o poder, ou tomar o poder para transformar o mundo?

3. Chávez: ¿"novo libertador", sucessor de Fidel Castro?

4. Foro de São Paulo, Cuba e Lula

5. "Teologia da libertação", indigenismo e "sociedade futura"

6. Desconstrução de teorias, utopias e teologias...

7. "Território Social Mundial" e Acampamento da Juventude, laboratórios de um "outro mundo" autogestionário e anárquico

8. FSM, "matança dos inocentes" e "diversidade" intolerante

9. Esquerdas reconhecem calcanhares de Aquiles

Conclusão: ver, julgar, atuar

 

Introdução

"O maior lobby da Terra"

O 5o. Fórum Social Mundial (FSM), efetuado em Porto Alegre entre 26 e 31 de janeiro pp., se consolidou como uma "nova superpotência emergente", a maior articulação de movimentos de esquerda social e política dos 5 continentes, que, sob a bandeira de uma ambivalente "diversidade", vai contribuindo para empurrar o mundo rumo ao mundo anárquico e autogestionário profetizado por Karl Marx. "Este foi o Fórum dos Fóruns, um encontro superlativo, sobretudo por representar a vitalidade da esquerda mundial", disse o coordenador geral do FSM, o brasileiro Jéferson Miola. E um editorial do jornal O Estado de S. Paulo, um dos mais influentes meios de imprensa do Brasil, qualificou o FSM como "o maior lobby da Terra".

Exageros à parte, seria fugir da realidade cair no extremo oposto e negar a transcendência do FSM, enquanto preocupante rede revolucionária com ramificações no mundo inteiro, com sua função catalisadora e dinamizadora das esquerdas. Neste informe, se apresentarão entrevistas declarações de personalidades participantes do evento e dados objetivos, que ilustram as metas anti-cristãs do FSM, suas discussões estratégicas, seus pontos fortes e seus calcanhares de Aquiles, de maneira que o próprio leitor possa tirar suas próprias conclusões.

O 5o. FSM em cifras

Na 5a. edição do FSM houve, segundo dados oficiais dos organizadores, 155 mil participantes inscritos, provindos de 135 países dos 5 continentes; entre eles, 35 mil do Acampamento Internacional da Juventude (AIJ), 2.800 voluntários e 6.823 jornalistas que cobriram o evento. Efetuaram-se 2.500 conferências e painéis, promovidas por 6.588 organizações, redes e movimentos sociais de 122 países. As atividades concentraram-se em torno de 11 Espaços Temáticos, ao longo de 4 km da orla do Guaíba, com 150 mil metros quadrados de área construída (a maioria, com tendas de lona), equivalente a 18 estádios de futebol do tamanho do Maracanã.

Antecedendo, ou simultaneamente ao FSM (26-31 de janeiro), foram efetuados 7 importantes eventos, todos em Porto Alegre, com exceção do primeiro deles: Fórum Social Pan-Amazônico (Manaus, 18-22 de janeiro); Fórum Mundial de Teologia e Libertação (21 a 25 de janeiro); Fórum Social das Migrações (23-24 de janeiro); Fórum Social Mundial da Saúde (23-25 de janeiro); Fórum Mundial de Juízes (23-25 de janeiro); Fórum de Autoridades Locais pela Inclusão Social (25 de janeiro), Fórum Mundial da Informação e Comunicação (25 de janeiro); e Fórum Parlamentar Mundial (29-30 de janeiro).

 

1. Frei Betto, Gramsci e Lenine:

"pressão popular" para "conquistar" o poder

Os recados de Frei Betto

Frei Betto, frade dominicano, teólogo da libertação, ex-guerrilheiro, amigo e confidente do presidente Lula e do ditador Fidel Castro, foi uma das estrelas do 5o Fórum Social Mundial (FSM), falando para auditórios em sua maioria lotados por jovens militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). É atualmente um dos maiores articuladores das esquerdas políticas, sociais e religiosas brasileiras. Acaba de deixar o governo, onde coordenou, durante dois anos, o programa Fome Zero.

Gramsci: Parcelas gradativas do poder

Os principais recados de Frei Betto foram para ensinar os "movimentos sociais" a fazerem nos próximos meses uma inteligente e bem calculada "pressão popular" sobre o governo Lula, de maneira que este possa ir se deslizando à esquerda, alegando o clamor popular. Nesse sentido, o frade explicou que Lula "chegou ao governo, mas não ao poder"; que o presidente tem necessidade de "conquistar parcelas gradativas do poder, dentro da legalidade burguesa, como dizia Gramsci"; e que essa "conquista" progressiva do poder real só será possível se os "movimentos sociais" pressionarem o governo. "Governo, é que nem feijão: só funciona na panela de pressão", afirmou o frade revolucionário.

Lenine: "Doença infantil do comunismo"

No entanto, ele advertiu que a agitação social deve ser feita pelas esquerdas com cabeça fria, evitando cometer imprudências do passado, pelas quais tentaram apressar a marcha e, com isso, meteram medo na população: "Lenine disse que o esquerdismo se transforma na doença infantil do comunismo quando, ao invés de atrair o povo, o assusta", lembrou Frei Betto, acrescentando que é preciso uma "mobilização permanente, mas com cuidado, para evitarmos que o governo Lula caia no colo da direita".

O frade acrescentou que saiu do governo precisamente para ficar com as mãos livres de maneira a colaborar na articulação dessa "pressão". E, lembrou que o "Che" Guevara, "tendo chegado ao poder, sendo ministro, abandonou tudo para tentar reconstruir o processo revolucionário na base, na Bolívia". "Das três grandes tentações do ser humano, sexo, dinheiro e poder, o poder é a mais perigosa", acrescentou. Com isso, pareceu insinuar que sua própria missão seria, de maneira análoga, impulsionar no Brasil, nas mentalidades das esquerdas, uma espécie de revolução dentro da revolução. E, sem dúvida, contribuir para um assalto ao mesmo tempo calculado e ousado para a "conquista" do poder.

"Política, mística e religião": a "companheira Aparecida"

Frei Betto explicou também que só a política não basta para seduzir as mentes e tocar adiante a esquerdização da sociedade, e que por isso a receita ideal é uma mistura de "política com mística e com religião".

Disse Frei Betto a esse respeito: "Quando estive no México, os companheiros mexicanos me perguntaram como poderiam fundar um partido como o PT. Eu lhes disse: a primeira coisa que vocês precisam fazer para fundar um PT mexicano é ter do lado de vocês a companheira Guadalupe (Nossa Senhora de Guadalupe, Padroeira do México), assim como nós no Brasil temos ao nosso lado a companheira Aparecida (Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil). Como o povo latino-americano é religioso, temos que colocá-las de nosso lado, do contrário o povo se volta contra nós".

"A religião pode ser instrumento de opressão, mas também de libertação! Jesus Cristo morreu como prisioneiro político!", bradou, num dos poucos momentos em que abandonou seu perfil frio e calculado.

Misturando ele mesmo os ingredientes da receita revolucionária que predicava, Frei Betto acrescentou, de maneira sem dúvida chocante, que o "Che" Guevara foi a versão política de São Francisco de Assis; e que o "homem novo" vai nascer do "casamento" místico de "Che" Guevara com Nossa Senhora Aparecida, com Santa Teresa de Ávila e com Santa Catarina de Siena.

"A dialética é que tem razão"

"Durante um tempo, influenciado por um certo marxismo mecanicista e um certo automatismo cristão, eu acreditava que criando boas estruturas, teríamos homens e mulheres novos. O socialismo achava que criaria, através de boas estruturas, gerações de revolucionários, o que não se confirmou", confessou o frade dominicano, concluindo: "A dialética é que tem razão: é preciso trabalhar simultaneamente o pessoal e o social, o cultural e o subjetivo, de forma interligada. Um outro mundo é possível, na medida em que um novo ser seja possível. Elaborar isso, é o desafio".

Logo depois de adestrar milhares de participantes do FSM nos segredos da agitação política e da conquista do poder, Frei Betto partiu para Havana, onde anunciou: "Seguiremos lutando por um Brasil melhor".

Os próximos meses mostrarão em que medida a culinária revolucionária de Frei Betto será posta em prática pela chamada "esquerda social", que no FSM mostrou sua disposição de retomar marchas e ações de efeito em nível nacional. "2005 será um ano de luta de massas", anunciou Gilberto Pontes, dirigente do MST e secretário do Foro Nacional pela Reforma Agrária, talvez com cartas marcadas.

Filha do "Che" Guevara: "métodos velhos" e "erros" a serem evitados

No FSM, a cubana Aleida Guevara, filha do guerrilheiro argentino-cubano Ernesto "Che" Guevara, explicou numa palestra para os militantes mais jovens do MST a importância de aplicar estratégias gradualistas, bem calculadas, para não chocar o povo e ter, com isso, que fazer retrocessos estratégicos. Suas palavras foram na mesma linha de Frei Betto e de outros dirigentes de esquerda que, neste FSM, colocaram todo o empenho persuasório em azeitar a "máquina" revolucionária para avançar nos próximos meses, rumo à conquista de espaços de poder, evitando erros estratégicos.

Aleida Guevara lamentou que "os inimigos da Revolução utilizam nossos erros e nossas divisões para abalar a nossa causa e jogar o povo contra nós". E deu como exemplo uma recente manifestação no Equador, na qual ela participou, em que alguns militantes mais exaltados quebraram algumas vidraças de prédios: "Podem imaginar o que toda a imprensa publicou, com fotos, fazendo o maior estardalhaço: um pequeno incidente justo no final -e nós, que nos tínhamos comportado tão bem o tempo todo- foi o pretexto para a direita tentar jogar o povo contra nós. E isso é o que não podemos provocar, pois o povo fica com medo e se afasta de nós", explicou, concluindo: "Se fizermos a transformação social através dos métodos velhos, dá-se um passo para frente, para logo ter que dar um passo para trás".

 

2. ¿Transformar o mundo sem tomar o poder, ou tomar o poder para transformar o mundo?

Holloway e a "revolução intersticial"

O sociólogo escocês John Holloway, investigador do Instituto de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade Autônoma de Puebla, México, um dos mentores intelectuais dos rebeldes zapatistas desse país, abordou um tema teórico que foi dos mais debatidos neste Fórum Social Mundial (FSM): podemos mudar o mundo sem tomar o poder?

Holloway lidera uma corrente alter-globalista que, partindo de premissas próximas do anarquismo pós-moderno, afirma que para alcançar a "urgente" meta de derrotar o capitalismo, é sem dúvida preciso "uma revolução de caráter mundial"; mas, não sendo poucas as dificuldades para uma tarefa global e simultânea dessa magnitude, uma saída viável e prática é ir levando adiante a transformação "nos interstícios, nas gretas e nos espaços que forem sendo abertos" no tecido social. Ou seja, uma "revolução aqui e agora" que contribua a ir criando paulatinamente um "anti-poder dos subordinados" . Não se trata, esclareceu, de provocar "enfartes sociais" como seriam os provocados por levantamentos violentos, mas avançar através daquilo que denominou "revolução intersticial", que consiste basicamente numa "multiplicação de insubordinações, de 'nãos' e de rebeldias existentes no mundo, algumas tão pequenas que quase não se percebem, outras, tão grandes como o 'argentinaço' dos piqueteiros, as revoltas indígenas na Bolívia e no Equador, a rebelião dos zapatistas mexicanos e o próprio Fórum Social Mundial"

Holloway reconheceu que as objeções da esquerda política a este tipo de revolução social é que "lhe faltaria maturidade, pois carece de um objetivo ou meta" que lhe dê uma unidade; objetivo que, para esses objetantes, seria por exemplo "a tomada do poder estatal para, a partir daí, mudar a sociedade". A este respeito, Holloway ponderou que "se consideramos a história das esquerdas estatocêntricas, o denominador comum delas se chama traição", esclarecendo que com isso não era sua intenção fazer alusão direta nem a um Stalin nem, menos ainda, a um Lula, porque o âmago do problema radicaria na própria essência organizativa e hierárquica do Estado: "A traição já está inscrita na própria forma de organização estatal".

O sociólogo zapatista colocou assim o dedo numa chaga que não é só teórica, mas também prática entre os participantes brasileiros do FSM. Com efeito, uma porcentagem talvez minoritária deles, mas com vitalidade, não compreende as estratégias gradualistas de inspiração gramsciana, e se opõe ao presidente Lula alegando que a convivência com o poder o teria feito pactuar com seus adversários e dar as costas às suas antigas convicções socialistas.

Michael Hardt, professor na Duke University, dos Estados Unidos, e autor junto com o italiano Toni Negri do livro "Império", além de apresentar algumas diferenças conceptuais e estratégicas com Holloway, mostrou-se perto das teses "anti-institucionais" e anarquistas deste, criticando o "leninismo" dos que defendem a tomada do poder do Estado como um caminho necessário. Hardt, distinguindo entre poder e potência, disse que sem contar com o primeiro, mas sim com a segunda, complementada com uma adequada articulação das "multidões", o "outro mundo possível", anárquico e autogestionário, poderá ser alcançado.

Tariq Ali: tomar o poder para transformar o mundo

Discordando da corrente de Holloway e de sua tese anarquista de "mudar o mundo sem tomar o poder", o escritor paquistanês Tariq Ali, uma das principais figuras intelectuais do FSM, é um dos líderes de uma corrente que defende a tese oposta: não cabe dúvida, é preciso "tomar o poder para transformar o mundo". E cita concretamente, no plano político, o governo revolucionário de Chávez: "O exemplo venezuelano é atualmente o mais interessante" para, desde o poder, "implementar mudanças". De seu lado, no plano dos chamados "movimentos sociais", Tariq Ali coloca como modelo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil, que também "possui uma alternativa concreta" de poder revolucionário; e que, nesse sentido, "é muitíssimo mais interessante que o modelo dos zapatistas em Chiapas", defendido por Holloway. Por fim, o intelectual paquistanês aderiu aos esforços para a constituição de uma Confederação Bolivariana, integrada pelos governos esquerdistas do Brasil, Venezuela, Cuba, Argentina, Equador, Bolívia e Uruguai, para poder gerar "uma forma distinta de sociedade".

Atilio Borón: atualidade de Lenine

Nos debates em torno do dilema "transformar o mundo sem tomar o poder", ou "tomar o poder para transformar o mundo", interveio também Atilio Borón, professor da Universidade de Buenos Aires (UBA), um dos mais destacados intelectuais do FSM, e secretario executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), um "think tank" de esquerda com sede em Buenos Aires e filiais em outras 18 capitais latino-americanas, incluindo Havana.

Borón se inclina decididamente pela segunda opção, tendo polemizado a este respeito com John Holloway, um dos expoentes da primeira, em escritos publicados pelo CLACSO. Não obstante, Borón adverte que para aplicar efetivamente a estratégia da transformação através do poder é indispensável evitar o "espontaneísmo" e intensificar o trabalho de "organização". Para essa tarefa sugere uma releitura do texto clássico do revolucionário russo Lenine, "Que fazer", que traz, segundo ele, "sugestivas iluminações" e "valiosos elementos" para resolver questões relativas "à organização das forças populares", à "construção" de uma "consciência genuinamente revolucionária" e à resposta "aos desafios que põe a conquista do poder nas sociedades contemporâneas".

Borón explica que, por causa dessa falta de organização, as "insurreições populares" ocorridas entre 1997 e 2003, que derrubaram vários governos latino-americanos, e que em várias das quais tiveram ativa participação movimentos indigenistas, foram "tão vigorosas como ineficazes"; pois esses grupos, num "alarde de espontaneísmo e indiferentes perante as questões de organização", não foram capazes de "instaurar governos de sinal contrário àqueles que defenestraram com suas lutas" (Equador, 1997 e 2000; Peru, 2000; Argentina, dezembro de 2001; e Bolívia, outubro de 2003) .

"Certeza fundamental da superioridade do comunismo"

O intelectual argentino, no seu chamado a um "oportuno e necessário" "regresso a Lenine", e numa tarefa de árduo revisionismo histórico, tenta limpar a personalidade do cruel revolucionário russo da acusação de "despotismo asiático" e livrá-lo de culpas pelo "estalinismo com todos os seus horrores" que lhe seguiu.

E, anunciando o "início de uma nova era" revolucionária, intimamente ligada ao FSM, Borón reafirma sua "certeza fundamental" acerca da "superioridade integral do socialismo" e a "superioridade ética, política, social e econômica do comunismo como forma superior de civilização". E afirma que só deixa atrás "as certezas marginais, no dizer de Imre Lakatos", como por exemplo "as que instituíam uma única forma de organizar o partido da classe operária", ou as que, "na apoteose da irracionalidade, consagravam um novo Vaticano com o centro em Moscou, dotado dos dons papais da infalibilidade em tudo o que se relaciona com a luta de classes".

Stédile: "nossa querida Rosa Luxemburgo"

Nas discusões em torno do poder, e das estratégias para transformar a sociedade, vários expositores coincidiram em mencionar reiteradas vezes, em favor de suas posições, o nome da revolucionária polonesa Rosa Luxemburgo (1871-1919), considerada num informe do PT como "a mais importante revolucionária do século 20", que atuou na Polônia, na Suíça e sobretudo na Alemanha . João Pedro Stédile, dirigente do MST, referiu-se a ela, numa das palestras, como "nossa querida Rosa Luxemburgo", que "profetizou que a humanidade ou caminharia rumo ao socialismo ou descambaria para a barbárie", e cujos "ensinamentos" contribuiram para compreender "como os experimentos burocráticos do socialismo na Leste Europeu não deram certo".

Rosa Luxemburgo e dilemas atuais

Ao estudar algumas das principais polêmicas de R. Luxemburgo com outros líderes revolucionarios, como Lenine e Bernstein, sobre os rumos da revolução socialista, compreende-se o porquê de ser tão mencionada: vários dos dilemas por ela apontados no interior dos movimentos revolucionários, são similares aos que vivem as esquerdas hoje, que foram debatidos no 5o. FSM, e descritos sinteticamente em vários ítens deste Informe.

Mostrando sua radicalidade revolucionária, ela critica o "revisionismo" e o "reformismo" de muitos líderes e deixa claro que o que não se pode perder nunca de vista é a meta da conquista do poder pela revolução; mas, com senso de oportunidade, esclarece que não descarta, em determinadas conjuturas, a luta por "reformas". Num sentido libertário, polemiza com Lênin criticando o "ultracentralismo" e a "inércia burocrática" dos partidos comunistas, por estarem "impregnados" do "espírito" de "vigilantes noturnos", pelo qual é acusada de "espontaneísmo" por esses "burocratas". Tentando colocar os revolucionários com os dois pés na realidade, adverte que a "greve de massas" não pode ser "fabricada" artificialmente nem "decidida" no ar, mas deve constituir "um fenômeno histórico", colado nos fatos, resultante de uma determinada "situação social" ou de uma "necessidade histórica". Por fim, é sua a frase "socialismo ou barbárie", a que fez referência Stédile, dirigente MST.

 

3. Chávez: ¿"novo libertador", sucessor de Fidel Castro?

Presidente venezuelano incendeia o FSM

O presidente Chávez, da Venezuela, galvanizou as esquerdas políticas presentes no 5o. Fórum Social Mundial (FSM), durante sua visita de um dia a Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul (RS) e sede do FSM. Logo depois de chegar, dirigiu-se a um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a 100 km da capital, onde foi recebido por mil pessoas que empunhavam bandeiras de Cuba comunista, do Partido Comunista do Brasil (PC do B), do MST, de "Che" Guevara e do Movimento Sandinista da Nicarágua. À tarde, Chávez ofereceu conferência de imprensa diante de 300 jornalistas e fez palestra no ginásio Gigantinho, de Porto Alegre, diante de milhares de participantes do FSM, na sua maioria, jovens.

O clima criado em torno de Chávez foi quase messiânico, ao ponto de ser qualificado de "novo libertador" por Ignacio Ramonet, diretor do "Le Monde Diplomatique", membro do conselho internacional do FSM e um dos fundadores do evento alter-mundialista. O ministro brasileiro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosetto, o saudou como "uma das maiores lideranças políticas da América Latina". E, segundo um relatório da agência brasileira de esquerda Carta Maior, Chávez contribuiu com sua mensagem revolucionária para incendiar os debates do FSM.

"Não há solução no capitalismo"; "temos que reivindicar o socialismo como tese, como projeto, como caminho" ; para "romper com o imperialismo diabólico só há o caminho da revolução"; foram algumas das afirmações de quem está sendo apresentado como o sucessor político de Fidel Castro na América Latina.

Acordo com Cuba comunista e eixo latino-americano das esquerdas

Chávez tentou justificar os generosos acordos comerciais e financeiros com Cuba comunista, que permitem a sobrevivência da ditadura nesse país. Segundo ele, esse seria um primeiro passo de uma aliança estratégica latino-americana mais ampla com os governos esquerdistas da região (Lula, no Brasil, Kirchner, na Argentina, Vázquez, no Uruguai, Lagos, no Chile etc), em torno do que denominou "Alternativa Bolivariana para a América Latina e o Caribe" (Alba).

O presidente venezuelano evitou comentar um dos aspectos mais delicados desses acordos com Cuba, a nova Lei de Assistência Jurídica em Matéria Penal. Trata-se de um convênio entre ambos os países, oficializado em 22 de dezembro pp., que permitirá a juízes, funcionários e membros da polícia política do Estado cubano a atuar em território venezuelano com amplas faculdades para investigar, capturar e até interrogar a cubanos residentes na Venezuela, e inclusive a cidadãos venezuelanos que sejam requeridos pela justiça castrista, em cooperação com a polícia política do regime de Hugo Chávez.

Chávez explica a estratégia gradualista e defende Lula

No ginásio Gigantinho, durante a palestra de Chávez, uma parte dos presentes em vários momentos vaiou o presidente Lula, e gritou palavras de ordem acusando-o até de traição às suas promessas eleitorais. Note-se a reação de Chávez: ele saiu em defesa de Lula, explicando com todo cuidado que, nas atuais circunstâncias, o gradualismo é uma estratégia necessária dos governantes esquerdistas para se fazerem aceitar aos poucos, sem causar rechaço na população; e que erros de excessiva velocidade podem ser fatais para o processo revolucionário. "Na Venezuela, em especial nos primeiros dois anos de governo, as pessoas cobravam mudanças, queriam mais rápido, mais radical. Considero que não era o momento, porque há fases nos processos, há ritmos que não têm a ver só com a situação interna do país, mas com a situação internacional", explicou Chávez .

 

4. Foro de São Paulo, Cuba e Lula

Genoíno, Regalado etc.

No recente Fórum Social Mundial (FSM), o Foro de São Paulo (FSP) -uma rede de aproximadamente 100 partidos de esquerda e comunistas da América Latina- organizou o seminário "América Latina e Caribe: Conjuntura e Perspectivas", para debater "o lugar da luta política e da luta social", contando com a presença do presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), José Genoíno; de Roberto Regalado, do departamento de Relações Internacionais do Partido Comunista de Cuba (PCC) e um dos principais articuladores do Foro de São Paulo; e de representantes de partidos comunistas e socialistas de outros países da região. Parlamentares do FSP participaram também no simultâneo Fórum Parlamentar Mundial (FPM).

O FSP foi fundado em julho de 1990 pelo atual presidente do Brasil, Sr. Lula da Silva, então presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), a pedido do ditador comunista Fidel Castro, com o objetivo de proteger o socialismo cubano e latino-americano em momentos em que se consumava a desintegração do império soviético. De imediato, o FSP se converteu na mais importante rede de esquerdas da América Latina, até a criação, em 2001, do FSM.

Neste seminário do FSP, durante o FSM, não foi anunciada a presença de representantes das narco-guerrilhas colombianas FARC, como tinha acontecido no FSM de 2001, o que na ocasião deixou em maus lençóis aos organizadores do FSM. O representante dos movimentos de esquerda da Colômbia foi o secretário geral do Partido Comunista Colombiano (PCC), Jaime Caicedo, que, tomando o cuidado de não mencionar em nenhum momento as FARC por seu nome, chamou os presentes a não deixar-se levar pela propaganda que apresenta os "movimentos sociais colombianos" como se fossem "terroristas integristas". Também, anunciou, com vistas às eleições presidenciais de 2006, um trabalho político coordenado de "todos os setores populares da Colômbia, incluídos os movimentos armados".

Guarda-chuvas político

O seminário organizado pelo FSP funcionou, mais uma vez, tal como Fidel Castro pediu a Lula em 1990, como guarda-chuvas político para prestigiar e proteger Cuba comunista. O deputado venezuelano Saúl Ortega Campos, presidente da Comissão Permanente de Política Exterior da Assembléia Nacional e membro do Movimento Quinta República, reconheceu que um dos objetivos centrais do presidente Chávez é "aprofundar a revolução venezuelana de braços dados com a irmã República de Cuba", acrescentando que "é importante que o processo cubano se encaixe de maneira similar no atual processo que vivem vários países da América Latina", atualmente com governos de esquerda.

Federico Tomás Gomensoro, secretario de Relações Internacionais do Partido Socialista do Uruguai (PSU) e representante da Frente Ampla -coalizão que ganhou as recentes eleições presidenciais- disse que o presidente eleito, Tabaré Vázquez, no momento de assumir a presidência do Uruguai, em 1o. de março próximo, restabelecerá as relações diplomáticas com Cuba; e anunciou com satisfação que esperam contar com a presença do tirano do Caribe.

Perfil discreto, para não prejudicar Lula

Neste FSM, os dirigentes do FSP optaram por um perfil discreto, tanto nas declarações quanto nas aparições públicas. A cautela em evitar pronunciamentos extremados teve como um de seus objetivos não prejudicar a imagem política do presidente Lula, fundador do FSP junto com Fidel Castro, com vistas às eleições presidenciais de 2006.

Com efeito, no 2º FSM de 2002, o FSP tinha optado por uma visibilidade ostensiva, chegando a efetuar uma multitudinária assembléia em um dos maiores auditórios da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (PUC), com a participação de membros do comitê organizador do FSM. Isso contribuiu na ocasião para abrir um flanco estratégico, deixando em demasiada evidência a relação direta entre ambas as redes de esquerda. Alguns meses depois, durante a campanha eleitoral de Lula, sua notória vinculação com o FSP lhe rendeu não poucas dores de cabeça. Analistas internacionais como o professor Constantine Menges, do Hudson Institute, baseando-se em declarações de Lula, Fidel Castro e Chávez, alegaram que se delineava uma espécie de "eixo do mal" latino-americano. Em outubro de 2002, durante um conhecido programa brasileiro de televisão, Lula fez uma tentativa de ridicularizar essa acusação, a qual lhe valeu uma interpelação pública do ex-prisoneiro político cubano Armando Valladares. Lula, para não trazer mais problemas à sua campanha eleitoral e à sua nova imagem internacional, com tão espinhoso tema, passou a fazer silêncio absoluto sobre o mesmo.

"Centralismo, modelo ultrapassado"

Um outro motivo para o perfil discreto do FSP durante o FSM de 2005, deve-se às críticas provindas de setores da esquerda libertária e anarquista -com crescente influência nas ONGs brasileiras e internacionais- dirigida aos partidos comunistas, em particular, o de Cuba. Segundo essas correntes libertárias, promotoras da "diversidade", Cuba continua atuando com antigos clichês monolitistas como o da supremacia dos partidos comunistas sobre as organizações sociais, e pecando pela excessiva elaboração teórica marxista clássica, o que levaria esses partidos a um descolamento com a realidade e com a opinião pública.

A brasileira Verena Glass, uma das maiores especialistas no FSM e nos "movimentos sociais", lembra que "o mundo mudou desde Marx, o proletariado não é mais a grande força motora das mudanças que se fazem necessárias no sistema neoliberal e o centralismo verticalizado da esquerda tradicional é um modelo ultrapassado e profundamente rejeitado pelas novas gerações".

De qualquer maneira, o FSP, apesar das fossilizações conceptuais e estratégicas, é uma força atuante e organizada, que seria perigoso subestimar.

Direitos humanos, Cuba e "Che" Guevara

Organizadores do FSM afirmaram que, durante o evento, os participantes "radicalizaram na defesa dos direitos humanos". Todavia, nas milhares de conferências e painéis, muitos deles dedicados aos direitos humanos, raramente se ouviram críticas à situação de flagrante violação dos direitos humanos em Cuba, uma nação latino-americana com 12 milhões de habitantes, que sofrem desde há 46 anos uma implacável tirania comunista.

Em sentido contrário, os elogios a Cuba comunista abundaram da parte de figuras destacadas do FSM, como o presidente Chávez, da Venezuela, o teólogo Leonardo Boff, Frei Betto etc. A cruel figura do guerrilheiro cubano-argentino "Che" Guevara foi também posta em realce em vários dos mais concorridos eventos, e apresentada como uma figura idealista, generosa e até pacífica, como um modelo a ser imitado pela juventude. É o que fez, por exemplo, o jornalista uruguaio Roberto Savio, membro do conselho internacional do FSM e moderador do importante painel "Quixote hoje: utopia e política", no auditório Araújo Viana.

A delegação cubana esteve encabeçada por Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Nacional do Poder Popular, que também participou do simultâneo Foro Parlamentar Mundial. Alarcón expressou seu "otimismo" com o 5o. FSM, motivado pelo clima de "solidariedade" para com o regime comunista, destacando como um exemplo o fato de que os organizadores tivessem escolhido uma menina cubana para ler uma mensagem oficial em espanhol, no ato de inauguração do evento. Mensagem que paradoxalmente falava "da justiça e da dignidade como valor humano universal", algo de que Cuba carece totalmente desde há mais de 40 anos.

. Em entrevista, Alarcón revelou também que antes do FSM houve uma reunião de coordenação de Partidos Comunistas da América Latina e de cinco europeus, na qual participou, para articular a estratégia dos comunistas no FSM.

 

5. "Teologia da libertação", indigenismo e "sociedade futura"

Pe. Torres: indígenas, "reserva espiritual"

Entre os 200 teólogos da libertação presentes no 5o. Fórum Social Mundial (FSM), vários deles manifestaram de uma ou outra maneira sua esperança no indigenismo enquanto uma das novas "forças libertadoras". O sacerdote chileno Sergio Torres, um dos fundadores da teologia da libertação (TL) e do movimento "Cristãos pelo Socialismo", chegou a dizer que "os indígenas são uma reserva espiritual" e "até um antecipo da sociedade futura". Segundo o Pe. Torres, eles "não vivenciam o individualismo" e "conseguiram resgatar as tradições espirituais ancestrais próprias", as quais estariam "muito perto dos sonhos de ecologistas e partidos verdes". Por fim, o teólogo chileno, de maneira surpreendente, valora como uma vantagem dessas "tradições indígenas", o fato de que "não são tradições cristãs", contaminadas pela mentalidade conservadora.

Num plano estratégico, o Pe. Torres reconheceu que o FSM contribuiu à "retomada" da teologia da libertação e inclusive a "fortaleceu". E que agora a teologia da libertação "se adapta" aos novos tempos, passando a lutar pela "libertação de gênero" (homossexuais e lésbicas), "de raça" (índios e negros), e de outros "excluídos".

Indígenas: "Nós somos o outro mundo"

Durante o FSM, o "Puxirum" (em tupi-guarani: espaço para o encontro entre o material e o espiritual) reuniu representantes de 66 "povos indígenas", provenientes de 14 estados brasileiros e de 13 países (Brasil, Perú, Chile, Colômbia, Venezuela, Guatemala, México, Argentina, Bolívia, Suriname, Guiana, Paraguai e Equador).

No evento, convocado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA), foi escolhido o ousado slogan "Nós somos o outro mundo", em resposta ao slogan do FSM, "Um outro mundo é possível". E foi lançada a Agenda Indígena Amazônica (AIA), que exige dos governos dos países da região o "reconhecimento" de "todos os direitos dos indígenas" e a "devolução" do que denominam "nosso território" ancestral, para passar a governá-lo "segundo nossos sistemas organizativos, políticos, jurídicos e culturais". O documento pede ainda aos governos envolvidos que "retirem os invasores das terras indígenas".

Durante o Puxirum, efetuou-se o Ritual de Proteção do Fogo Sagrado, realizado pelos pajés dos povos guarani, kaingang e xoclen, comunidades anfitriãs do evento, e a Cerimônia Internacional dos Oito Mil Tambores.

Foi o primeiro FSM em que os indígenas se apresentaram tão organizados, tiveram um espaço próprio e deram a conhecer de uma maneira tão nítida as metas e as exigências do movimento indigenista, que, sob o bafejo da teologia da libertação podem trazer graves conseqüências políticas para a região amazônica.

Amazônia continental: alvo estratégico

A Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e as numerosas ONGs internacionais que levam adiante atividades de "conscientização" revolucionária nas tribos indígenas da Amazônia Continental, ou Pan-Amazônia, conhecem perfeitamente o valor estratégico dessa macro-região, que se estende por regiões limítrofes de oito países da América do Sul e é detentora de uma das maiores riquezas hídricas, biológicas e minerais do planeta.

A meta dessas entidades de esquerda religiosa e política, parece ser a de transformar vastas regiões da Amazônia Continental em "zonas liberadas", deixando-as, ao menos na aparência, sob o controle dos indígenas, e nas quais os Estados nacionais veriam restringida sua soberania. Não é difícil imaginar quanto essas "zonas liberadas" poderiam ser terreno fértil para acobertar guerrilheiros como os da Colômbia, narcotraficantes etc., provocando metástases nos países da região.

Marilene: "distinção entre Estado e Nação"

"Existem na região inúmeros povos e comunidades cujos territórios, cultura e modo de vida nada têm a ver com os Estados nacionais", afirma Marilene Correia, secretária de Ciências e Tecnologia do Estado de Amazonas, dando argumentos para aqueles que desejam a concretização das "zonas liberadas". No mesmo sentido, acrescentando idéias que vão na linha do debilitamento das fronteiras nacionais em favor dos territórios indígenas, Luis Arnaldo Campos, ex-secretário de relações internacionais da prefeitura de Belém, no estado do Pará, disse que uma "questão crucial" é "o debate sobre a distinção entre Estado e Nação, dado que, enquanto Estados plurinacionais, que abrigam centenas de diversas culturas e etnias indígenas, os países amazônicos se defrontam com a polêmica do que é, em muitos casos, a fronteira nacional".

Campos: "plurinacionalidade e multietnicidade"

"Temos que trabalhar para o reconhecimento constitucional da plurinacionalidade e multietnicidade de nossso países", acrescentou Campos, concluindo que "o grande desafio" do FSPA é pensar num "projeto estratégico para a Amazônia" que aponte fórmulas de "autogovernança do povo".

Por fim, Adilson Vieira, co-organizador do Fórum Social Pan-Amazônico (FSPA) e secretário-geral do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), uma rede que articula mais de 500 organizações e movimentos sociais da Amazônia brasileira, confidencia que existe uma quantidade enorme de "experiências concretas" que vêm sendo desenvolvidas "nas várias áreas de fronteira", como "troca de tecnologia e conhecimentos entre seringueiros, indígenas e extrativistas", projetos de "economia solidária", "convênios entre universidades e movimentos sociais da Colômbia e do Brasil" etc. Vieira nega que esses "movimentos sociais" que atuam na região sejam "radicais". De qualquer maneira, seria de interesse que qualquer pessoa, entidade ou governo interessado tivesse acesso, de maneira transparente, às atividades das ONGs nessa estratégica região.

 

6. Desconstrução de teorias, utopias e teologias...

Utopistas versus anti-utopistas

No 5o. Fórum Social Mundial (FSM), os debates sobre as utopias atraíram milhares de participantes, em sua maioria jovens. Neles, as correntes sociais e políticas desconstrutivistas, de raiz anárquica, viram-se fortalecidas com depoimentos de personalidades presentes que questionaram a eficácia das excessivas elucubrações em torno de teorias políticas; sustentaram a defesa da subjetividade e até a incapacidade de obter certezas; e que, alegando a inutilidade e até nocividade das utopias, chegaram a proclamar o não-utopismo e o anti-utopismo. Estes aspectos do debate cobraram uma envergadura que não esteve tão visível nos FSMs anteriores, e que abre pistas para compreender o "outro mundo" anárquico, que está nascendo das entranhas do FSM.

Saramago: não-utopia

O escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, diante de mais de 10 mil jovens militantes sociais e políticos, começou sua palestra tentando desconstruir o conceito de utopia, apesar de "reconhecer" que os jovens em geral "são muito sensíveis" a essa idéia. "Eu não sou utopista", "o conceito de utopia é inútil", "se eu pudesse riscava a palavra utopia dos dicionários", "o discurso sobre a utopia é o discurso sobre o não existente", "vivemos hoje de utopia como por muito tempo vivemos de mitos e crenças, que não têm nada para dar, mas muito para prometer" "eu acho que não precisamos de uma utopia" para avançar , foram algumas de suas afirmações.

Após desacreditar o conceito de utopia, Saramago investiu sucessivamente contra a objetividade, a religião, a linguagem e a política: "A objetividade não existe, todos somos seres subjetivos e tudo o que fazemos é subjetivo", "fora de nossa cabeça, não há nada", "toda religião é um conjunto de subjetivismos", "as palavras são umas desgraçadas, fazemos delas o que queremos", "a política é a arte de não dizer a verdade, ela falseia, deturpa, condiciona e manipula", asseverou diante da surpresa de muitos assistentes.

Na continuação, Saramago esclareceu que seu não-utopismo sem dúvida conduz à necessidade de "uma revisão rigorosa nos conceitos de esquerda", mas que de maneira nenhuma tem como objetivo produzir uma paralisia; pelo contrário, ele propugna um tipo de ativismo efetivo, direto e imediato, com "menos retórica". "Não há tempo para gastar em discussões e movimentos de mobilização que resultarão em alguma melhora somente em 2043 ou, pior, daqui a 150 anos", é preciso que cada militante social do FSM se transforme no curto prazo num "instrumento para a ação", concluiu.

Ramonet: anti-utopia

Ignacio Ramonet, diretor de "Le Monde Diplomatique", um dos fundadores do FSM e atual membro de seu conselho internacional, foi mais sintético e talvez mais longe do que o próprio Saramago: "Somos contra-utopistas", proclamou, porque "as experiências históricas mostram que todas, todas as utopias terminaram mal". E deu como exemplos o nazismo, o estalinismo e os movimentos talibãs, que estiveram na raiz dos "piores horrores políticos". De maneira análoga ao não-utopismo de Saramago, ele deixou claro que seu anti-utopismo "não quer dizer que tenhamos que abandonar proposições, visões e objetivos", mas sim que os militantes alter-globalistas devem desvencilhar-se de excessivas elucubrações e teorizações. Que não haja dúvidas, "vamos mudar o mundo", concluiu este intelectual libertário, que -não se sabe se como exercício do anti-utopismo que predicou, ou do tardio utopismo que criticou- proclamou o presidente Chávez como um "novo libertador".

Gadotti: "a época das certezas passou"

Moacir Gadotti, professor da Universidade de São Paulo (USP), um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e membro do Instituto Paulo Freire, fez questão de insistir várias vezes na idéia de que "a época das certezas passou", tendo chegado a era das perguntas, "seguindo os métodos zapatistas". E concluiu: "Não precisamos de teoria, precisamos de meta".

Siddhartha Shivamurthy

O indiano Siddhartha Shivamurthy, após dizer que "o mundo contemporâneo é como uma casa que está entrando em colapso por causa de um gigantesco tsunami", afirmou que "o que estamos presenciando é o colapso das utopias", e que a saída para o mundo é uma mudança no ser humano, "não através da lógica, mas do experimental". A partir dessa mudança no homem poderá surgir uma "nova democracia", a qual "deverá começar com a democratização das religiões", levando ao "fim das individualidades", e "passando as pessoas a viverem comunitariamente".

Teologia da libertação e desconstrução

O sociólogo da religião venezuelano Otto Maduro, professor na Drew University, em New Jersey, abordou o tema "Religião para um outro mundo possível", diante de um auditório em que estavam presentes 200 teólogos da libertação, entre os quais, Leonardo Boff e os sacerdotes José Comblin, Sergio Torres e Oscar Beozzo, assim como centenas de religiosos, religiosas e membros de comunidades eclesiais de base.

Maduro fez uma "autocrítica" da teologia da libertação (TL), não para lamentar os efeitos de sua ação revolucionária no interior da Igreja e na sociedade civil, mas para atualizar e potencializar ainda mais essa ação. O religioso venezuelano disse que os teólogos da libertação, "como os profetas dos tempos bíblicos", "ousaram criticar a teologia dos que tinham poder, recursos, força" e denunciaram que as teologias "dominantes" só teriam interpretado a uma "elite" de "brancos, cristãos, heterossexuais, do Norte".

Revolução sexual

Mas, depois de uma fase radical, chegou para a TL uma hora de "concessões" ao poder, de desejo de "menos riscos" e de "menos ameaças ao próprio poder conquistado". Com isso, foram esquecidos os "gritos dos oprimidos" que deram razão de ser à "heresia" liberacionista, que entrou assim em decadência, chegando a transformar-se "numa nova ortodoxia". Nessa conjuntura, deixaram de ser ouvidos três "gritos" posteriores, que "não escutamos": as reivindicações de "grupos de gays, lésbicas e feministas"; a relação com a "corporeidade e a sexualidade"; e o atrelamento incondicional a governos de esquerda latino-americanos.

Os dois primeiros pontos que Maduro chama a assumir, constituem o pivô de uma enorme revolução sexual na Igreja. "A boa teologia da libertação deveria levar a sério, de uma vez por todas, a defesa de uma vida integral, de uma vida abundante e prazerosa", disse Maduro. O terceiro ponto na realidade não é uma crítica à meta socialista dos aludidos governos de esquerda, mas "ao egoísmo e à corrupção gerados pelo poder" . A exposição do teólogo Maduro foi, a seu modo, um exercício de desconstrução da TL, e de crítica à "corrupção" do poder, similar aos efetuados no plano sociopolítico por Saramago, Ramonet e Gadotti.

D. Casaldáliga: "mudar a religião"

O Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL), no qual o religioso venezuelano Otto Maduro fez sua palestra, foi um dos numerosos eventos em torno do 5o. FSM. Seu lema, "Teologia para outro mundo possível", se inspirou no lema do FSM, "Um outro mundo é possível", mas também numa arrojada afirmação de Dom Pedro Casaldáliga, bispo católico residente no Brasil e um dos expoentes da TL: "Se queremos ajudar o mundo, nossa contribuição é ajudar a mudar a religião; e para poder mudar as formas de religião nós temos que ir mais a fundo e mudar as imagens que configuram nossas experiências de Deus". É o que consignou o jornalista Faustino Teixeira, da agência esquerdista brasileira Carta Maior.

Pe. Barros: "Superar a convicção de que o cristianismo é a única religião verdadeira"

Os ousados debates do FMTL tiveram continuidade no âmbito do FSM, que pela primeira vez acolheu o tema da "espiritualidade" como um espaço temático específico, para "dar cidadania ao fenômeno religioso e sua incidência nos movimentos de libertação e de afirmação da vida". O monge beneditino brasileiro Marcelo Barros, explicou que a TL "colaborou fortemente" para a gestação do FSM, como um "afluente importante" para o "movimento altermundialista". E arrematou com uma ousada afirmação, que revela as metas últimas, desconstrutoras e relativistas, da nova "teologia da libertação pluralista": agora, ela deve concentrar esforços em "superar" a "convicção de que o cristianismo é a única religião verdadeira".

Inflexão no alter-mundialismo: rumo à anarquia política e religiosa?

Nessas tendências germinativas do movimento alter-mundialista, se constata a influência de posições de inspiração anarquista que sustentam que é preciso desconstruir as antigas teorias religiosas e políticas, pois elas fariam sair da realidade, com um efeito paralisante; e que é da "praxis" e da interação sócio-revolucionária que surgirá o "outro mundo possível" social, político e religioso. As teorias estariam viciadas na sua própria essência, pois foram geradas pela lógica e o raciocínio, assim como o poder estatal estaria corrompido na sua raiz, pela mera existência, no seu interior, de organização e hierarquias.

Até onde levará essa desconstrução de teorias, utopias e teologias?

O não-utopismo e o anti-utopismo não parecem reduzir-se a meras estratégias para ocultar metas revolucionárias, às quais, se fossem apresentadas abertamente, provocariam um distanciamento e até rejeição da opinião pública. Aqueles, sem dúvida, cumprem com esse papel de mascarar as metas, protegendo-as de eventuais críticas; mas isso não explica tudo, e levanta algumas interrogações.

Estes debates, indicarão no interior do movimento alter-globalista uma inflexão que deixe atrás a predominância do hiper-racionalismo, tão presente no marxismo-leninismo clássico e em certas formas de socialismo, rumo a um outro extremo, também profundamente errado, da negação do valor da razão como instrumento de análise e de conhecimento objetivo da realidade?

No final desse caminho, estarão maneiras novas de pensar, de perceber e de sentir similar à dos indígenas, tão promovidos neste FSM, e que chegaram a proclamar "nós somos o outro mundo"? Caminhar-se-á, então, rumo a sociedades de tipo "tribal", sem teorias, sem raciocínio lógico, sem conceitos abstratos e sem verdades objetivas?

O caminho rumo a um estado de coisas "tribal"

No século 20, foi o pensador brasileiro Plinio Corrêa de Oliveira quem talvez tenha vislumbrado e analisado criticamente, de maneira mais profunda, o problema da degradação progressiva do intelecto humano, rumo a uma sociedade com formas de pensar neotribais.

No seu livro "Revolução e Contra-Revolução", o mencionado autor explica que "o caminho rumo a este estado de coisas tribal tem de passar pela extinção dos velhos padrões de reflexão, volição e sensibilidade individuais, gradualmente substituídos por modos de pensamento, deliberação e sensibilidade cada vez mais coletivos".

Estruturalismo e vida tribal

E acrescenta Corrêa de Oliveira:

"É impossível não perguntar se a sociedade tribal sonhada pelas atuais correntes estruturalistas dá uma resposta a esta indagação. O estruturalismo vê na vida tribal uma síntese ilusória entre o auge da liberdade individual e do coletivismo consentido, na qual este último acaba por devorar a liberdade. Segundo tal coletivismo, os vários 'eus' ou as pessoas individuais, com sua inteligência, sua vontade e sua sensibilidade, e conseqüentemente seus modos de ser, característicos e conflitantes, se fundem e se dissolvem na personalidade coletiva da tribo geradora de um pensar, de um querer, de um estilo de ser densamente comuns".

"Nas tribos, a coesão entre os membros é assegurada sobretudo por um comum pensar e sentir, do qual decorrem hábitos comuns e um comum querer. Nelas, a razão individual fica circunscrita a quase nada, isto é, aos primeiros e mais elementares movimentos que seu estado atrofiado lhe consente. 'Pensamento selvagem' (cfr. Claude Lévy-Strauss, 'La pensée sauvage', Plon, Paris, 1969.), pensamento que não pensa e se volta apenas para o concreto. Tal é o preço da fusão coletivista tribal. Ao pajé incumbe manter, num plano místico, esta vida psíquica coletiva, por meio de cultos totêmicos carregados de 'mensagens' confusas, mas 'ricas' dos fogos fátuos ou até mesmo das fulgurações provenientes dos misteriosos mundos da transpsicologia ou da parapsicologia. É pela aquisição dessas 'riquezas' que o homem compensaria a atrofia da razão. Da razão, sim, outrora hipertrofiada pelo livre exame, pelo cartesianismo, etc., divinizada pela Revolução Francesa, utilizada até o mais exacerbado abuso em toda escola de pensamento comunista, e agora, por fim, atrofiada e feita escrava a serviço do totemismo transpsicológico e parapsicológico..."

 

7. "Território Social Mundial" e Acampamento da Juventude, laboratórios de um "outro mundo" autogestionário e anárquico

Acampamento Intercontinental

35 mil pessoas, em sua maioria jovens, participaram do Acampamento Intercontinental da Juventude (AIJ), montado num terreno de 50 hectares, formando parte de um perímetro mais amplo que reuniu praticamente todas as atividades do 5o. Fórum Social Mundial (FSM), chamado "Território Social Mundial", na orla do rio Guaíba. Nesta edição do FSM, mais ainda do que nas outras, o AIJ se constituiu num laboratório do "outro mundo", de raiz autogestionaria e anárquica, almejado por boa parte dos participantes do gigantesco evento alter-mundialista.

"Reinvenção da vida em sociedade"

Segundo foi explicado pela comissão coordenadora do AIJ, este experimento, já na sua primeira edição, em 2001, "ultrapassou a idéia de um simples alojamento alternativo", para buscar "perspectivas de reinvenção das relações políticas e da vida em sociedade", e transformar-se num "espaço de vivência e convergência das mais diversas formas de contestação à hegemonia capitalista". O Acampamento é um "centro de construção simbólica e de resistência, radicalizando-se no dia-a-dia e possibilitando que a força desse movimento seja levada para todo o mundo". Se pretende que as "novas formas de fazer política" sirvam para "potencializar" as práticas "transformadoras", dizem os coordenadores do evento.

"Horizontalidade" e "autogestão"

A "horizontalidade" e a "autogestão" foram princípios fundamentais postos em prática no AIJ, pelos quais "todos os participantes administram, decidem e executam decisões que aprimoram uma nova maneira de se fazer política" . "Nesta edição, defendemos que cada um acampe como quiser", afirmou Fernando Campos, 30 anos, membro do Conselho Livre Metropolitano de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo, e um dos pioneiros do evento. O sistema foi de "autogestão", não houve ruas definidas para alinhar as barracas, apenas bairros, onde cada um ocupou o chão como achou melhor.

"Centros de Ação"

Desde a primeira edição, no 1o. FSM de 2001, o AIJ foi ao mesmo tempo "embrião" e "vitrine" de "experiências radicais" de "inclusão social" e "desenvolvimento sustentável". Nenhum detalhe, nesta edição do acampamento, foi desprovido de significado simbólico. Neste ano, dezenas de atividades culturais e políticas se efetuaram nos chamados Centros de Ação (CAs), como foram o "Caracol Intergaláctico" ("lutas globais", "novas formas de ativismo e de ação direta"), o "Espaço Che" (em torno da figura do guerrilheiro cubano-argentino Ernesto "Che" Guevara), o "Lògùn Ède" (dedicado à "diversidade sexual"; o nome é da "divindade" bi-sexual "yorùbá"); o "Terrau" ("reforma agrária e urbana"); o "Tupiguara" ("casa de todos", em linguagem das tribos indígenas tupi guaranis, do sul do Brasil); etc.

"Axônios"

Complementares aos CAs funcionaram 9 casas com um visual primitivo e esquisito, os chamados "Axônios", espaços "bioconstruidos" com estrutura de bambu, ferro e lona, em formato geodésico, onde cabem 150 pessoas. O nome não foi escolhido ao acaso, segundo explicaram participantes do AIJ: um axônio é um prolongamento dos neurônios, que pode medir de milímetros até mais de um metro; ele se conecta com outros e "é especializado em gerar e conduzir o potencial de ação".

 

8. FSM, "matança dos inocentes" e "diversidade" intolerante

Aborto: flagrante contradição

No 5o. Fórum Social Mundial (FSM), cuja Carta de Princípios "propugna pelo respeito aos direitos humanos", entre as maiores contradições estiveram as numerosas atividades favoráveis à legalização do aborto, ou seja, à matança de seres inocentes que vêm transformado o ventre materno, onde habitam temporariamente, em câmara de tortura e de morte. Essas atividades foram promovidas pela ONG feminista Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), no marco da campanha "Católicas pela Legalização do Aborto no Brasil".

"Ajudar as católicas a serem a favor do aborto"

"Queremos ajudar as católicas a serem a favor do aborto não apesar da fé, mas em nome da fé", chegou a dizer Maria José Rosado, coordenadora da entidade, que acrescentou, de maneira não menos chocante: "Muitas pessoas pensam que nós, feministas favoráveis à legalização do aborto, somos contra a maternidade, mas não é nada disso. A decisão livre das mulheres sobre ter ou não filhos humaniza a maternidade".

De seu lado, Dulce Xavier, relações públicas da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, afirmou que "há religiosos e religiosas que participam do grupo", que sua entidade defende "a liberdade de católicas e não católicas sobre o próprio corpo" e que "é possível ter autonomia sobre o próprio corpo e continuar sendo bom católico".

Ministras de Lula

Segundo as dirigentes da CDD, esta campanha "reforça" as ações da ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que em dezembro de 2004 lançou o 1o. Plano Nacional de Políticas para Mulheres, com o objetivo de "recolher e propor mudanças na legislação sobre o aborto" e de "garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres". Já a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial, se manifestou "favorável à legalização do aborto", e qualificou de "rígidos" e "elitistas" àqueles que defendem a vida do ser que está por nascer.

"Diversidade" intolerante

Uma outra contradição flagrante no FSM, cuja Carta de Princípios o define como "um espaço aberto" para "o debate democrático de idéias", deu-se no dia 25 de janeiro, véspera da abertura do evento, quando 7 militantes da juventude do PSDB, um partido brasileiro de centro-esquerda, começaram a montar uma barraca no Acampamento da Juventude. Quase imediatamente, dezenas de militantes de outros partidos mais à esquerda, e membros de ONGs, rodearam o pequeno grupo e começaram a hostilizá-los verbal e fisicamente. Organizadores do Acampamento e a Polícia Militar que se fez presente reconheceram o direito desses jovens de permanecer no Acampamento, mas acrescentaram que não tinham possibilidade de salvaguardar sua integridade física. Este fato é uma pequena, mas sintomática, ponta de iceberg que indica a intolerância e o espírito ditatorial subjacente na "diversidade" proclamada pelo FSM.

Segundo seus organizadores, é possível definir o FSM com essa só palavra, "diversidade", o que pode soar simpático aos que não conhecem as metas do Fórum. Na realidade, parece tratar-se de uma "diversidade" excludente, com mão e sem contra-mão, pois só admite aquilo que estiver à esquerda, e que, de uma maneira ou outra, contribua para realizar o pesadelo anárquico vislumbrado por Marx.

 

9. Esquerdas reconhecem calcanhares de Aquiles

FSM: Força e fraqueza

A força indiscutível demonstrada pelo 5o. Fórum Social Mundial (FSM) é, entretanto uma parte da realidade, pois o movimento alter-mundialista está longe de ser incoercível e onipotente: ele possui debilidades e calcanhares de Aquiles, tal como o reconheceram destacados participantes. Ouvir a confissão desses pontos fracos, serve para obter uma visão balanceada do FSM e estar em condições de fazer uma denúncia de seus objetivos anticristãos, sem cair em exagerados pessimismos derrotistas, nem em excessivos otimismos triunfalistas, ambos igualmente paralisantes.

Altmann: "Mas terá valido a pena?"

O teólogo da libertação protestante Walter Altmann abordou de maneira descarnada a "frustração" provocada pelo "adiamento de projetos e sonhos", o que tem levado a muitos militantes da esquerda a uma espécie de crise axiológica que os faz questionar até a validade da própria luta que levaram durante anos, talvez durante vidas inteiras. Altmann reconhece que esperanças têm havido "muitas", mas que ao mesmo tempo "muitas delas também se frustram, nos frustram". Não só entre os teólogos da libertação, mas "mesmo no interior dos movimentos sociais", surge "a inquietante pergunta: 'mas terá valido a pena'?" Altmann continua sua análise dizendo que "o adiamento, aparentemente sem data marcada, da concretização dos sonhos quando ela já aparecia tão próxima", provoca um problema criteriológico que "nos assalta e constitui uma grave ameaça ao próprio movimento da esperança".

"Frustração" e "adiamento": incapacidade de convencer

O teólogo Altmann não menciona um problema chave, subjacente à "frustração" dos militantes diante do "adiamento" desses "sonhos", no plano teológico e no político, que é a incapacidade demonstrada até agora de convencer e arrastar as maiorias na direção desses "sonhos" revolucionários, que têm sido percebidos pelo bom senso popular como pesadelos.

Pe. Torres: "Vamos tardar 30 anos em ter nova alternativa"

O já citado teólogo da libertação chileno Pe. Sergio Torres, lembrou que a TL nasceu nos anos 60 e se desenvolveu nas décadas de 70 e 80, junto com "movimentos de libertação muito fortes sob a inspiração da revolução cubana". E reconheceu que os movimentos de esquerda socialista ficaram "desanimados" e "debilitados" com "a crise do socialismo", que derivou na queda do muro de Berlim em 1989 e, logo depois, do comunismo soviético.

"Houve uma demasiada vinculação com um projeto histórico do socialismo", como "a experiência com o presidente Allende", no Chile, em que "os grupos da esquerda foram ingênuos e pensaram que era possível uma mudança profunda", disse o Pe. Torres, acrescentando que "a teologia, que também tem tendência à utopia, sofreu da mesma ingenuidade", ao se "identificar demais com um marxismo que já havia saído de moda e que tinha servido de embasamento para Teologia da Libertação". O duro resultado desses erros estratégicos, concluiu o Pe. Torres, é que "muito provavelmente vamos tardar 30 anos em ter uma nova alternativa" como, na sua época, o foi o chamado socialismo real .

Diga-se de passagem: apesar de reconhecer que a identificação com o comunismo custou aos teólogos da libertação -e, no fundo, aos socialistas do mundo inteiro- pelo menos 30 anos de atraso, o Pe. Torres não deixou passar a oportunidade para dizer, com pertinácia digna de melhor causa, que Cuba comunista "continua sendo uma referência extraordinária".

Frei Betto, Aleida Guevara, Borón

Como já foi visto, tanto Frei Betto quanto a cubana Aleida Guevara, filha do "Che", lembraram os "erros" estratégicos cometidos, que levaram às esquerdas brasileiras e latino-americanas a ficarem isoladas do povo que pretendiam interpretar. De seu lado, Atilio Borón, de CLACSO, constatou a "debilidade ou ausência, na prática, do impulso a partir da base" (ou seja, falta de adesão popular às causas revolucionárias), em alguns países latino-americanos. Borón destacou especialmente o gigantesco Brasil, onde "nunca na sua história" se produziu "uma greve geral nacional", apresentando uma "paisagem política" marcada "pela assombrosa passividade das suas classes e camadas populares" . Por fim, o intelectual argentino referiu-se em termos muito duros à "irracionalidade" e "tendência suicida" de algumas esquerdas latino-americanas, por afastarem-se da realidade.

Leonardo Boff: estrela do PT rejeitada "com desdém"

O problema das velocidades do processo revolucionário não só se põe com relação ao risco de descolamento das maiorias, em particular, do povo, mas também, como foi visto ao longo deste Informe sobre o 5o. FSM, dentro das próprias esquerdas.

Neste sentido, em entrevista ao jornalista Marco Aurélio Weissheimer, Leonardo Boff distinguiu "o Lula como pessoa, representante dos oprimidos com seus sonhos e esperanças políticas", e "o Lula Presidente, neocooptado pelo capital". E advertiu que "o efeito pior que este estilo de ilusão oficial está produzindo no meio do povo é a despolitização, a crença de que a política é enganação mesmo, que não adianta mais manter um sonho".

Boff constata que "por isso já há desilusão e também muita raiva" nas bases de esquerda, ao ponto que "se você oferece a estrela vermelha do PT -e já mudaram em algum lugar a cor- ninguém a quer receber. Ao contrário a rejeita com desdém. São símbolos que falam". Na referida entrevista a Weissheimer, o teólogo da libertação conclui: "Lula pode desiludir muita gente mas não pode fazer o povo perder a esperança e frustrá-lo no sonho que ele ajudou a sonhar e a formular politicamente".

Weissheimer: "auto-engano" de dirigentes do PT

O próprio Weissheimer deu posteriormente sua opinião sobre o atual dilema do PT, manifestando que "a quinta edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre deixou alguns sinais de alerta no ar para os quadros dirigentes do PT, para aqueles que ainda têm olhos para ver e ouvidos para escutar"; que "o partido está deixando de ser uma referência política importante para a maioria da geração dos fóruns, a juventude que vem participando ativamente deste movimento desde 2001"; que "quem andou pelo território do Fórum, principalmente pelo Acampamento da Juventude, sabe disso muito bem" e que "não só está deixando de ser uma referência como vem se tornando, progressivamente, uma referência negativa"; que "pode ser prematuro dizer que se trata de um quadro irreversível, mas os caminhos que o partido vem trilhando, suas práticas cotidianas e as escolhas que vem fazendo afastam-se cada vez mais dos caminhos, práticas e escolhas que atraem essa juventude que, ao contrário do que muitos dizem, permanece ávida por política"; que "o mais espantoso é que, passado o Fórum, muitos dirigentes do PT saíram a público para cantar em prosa e verso como havia sido positiva a participação do partido"; e, por fim, que "só é possível compreender essa manifestação explícita de auto-engano pelo alto grau de intoxicação com as demandas da realpolitik e da lógica do poder".

 

Conclusão: ver, julgar, atuar

Um "outro mundo" que já está nascendo

Nas páginas precedentes, pretendeu-se traçar um panorama objetivo do que ocorreu no 5o. Fórum Social Mundial (FSM), enquanto laboratório de um "outro mundo" autogestionário e anárquico, que, em certo sentido, já está nascendo. Esse "outro mundo" tem como denominador comum uma enigmática e ambivalente "diversidade", que parece ser o novo nome do caos. Através dessa "diversidade", se empurraria as sociedades humanas -mediante um deslizamento gradual e, no possível, indolor, que não cause sobressaltos na opinião pública- rumo à anarquia profetizada por Marx, na qual o próprio Estado deverá desaparecer.

Utopistas, não-utopistas, anti-utopistas, indigenistas, gramscianos, leninistas, guevaristas, teólogos da libertação, feministas etc., além de suas diferenças estratégicas, vão convergindo para esse "outro mundo", no qual irão se dissolvendo os restos da civilização cristã, e levando a humanidade a tipos de vida o mais afastados possíveis da Lei de Deus.

"Diversidade": rumo a novas formas de totalitarismo?

Do 1o. Fórum Social Mundial de 2001 até sua 5a. edição em 2005, o movimento alter-globalista foi estendendo cada vez mais suas ramificações pelo mundo inteiro, exercendo uma crescente função dinamizadora e catalisadora das esquerdas internacionais.

Cometeria um erro de cálculo o observador que se limitasse a avaliar o 5o. FSM meramente por aspectos contraditórios, folclóricos e até ridículos de algumas de suas manifestações, por deficiências organizativas, por falhas na enorme e complexa programação etc. Pois o fato relevante é que FSM, além de multiplicar o número de seus participantes inscritos (de 20 mil na 1a. edição, de 2001 a 155 mil na 5a. edição de 2005), amadureceu na sua capacidade de articulação, e avançou numa direção anárquica, com vários de seus membros mais destacados assestando o foco na desestruturação da vida de pensamento, da cultura e dos restos da civilização cristã. E isso poderá favorecer a imersão de parcelas da humanidade em formas de ser e estilos de vida marcadas pela subjetividade, a falta de lógica, a abundância de contradições e o neo-tribalismo.

Diante desse "outro mundo" que já está nascendo das entranhas do FSM, construído na base de uma "diversidade" que parece fazer da relativização de toda verdade um valor absoluto, é legitimo perguntar que espaço restará para os que discordam dessa visão tão diametralmente contrária ao pensamento aristotélico-tomista, fundamento filosófico da cultura e da civilização cristã.

Resultará exagerado suspeitar que nos primeiros esboços desse "mundo novo" possa estar em germinação um tipo de "fundamentalismo" anti-cristão, capaz de desencadear pressões e até perseguições contra os que continuam tomando os Mandamentos da Lei de Deus como valores absolutos? Se for assim, que tipo de pressões poderiam surgir dessa "diversidade" que parece querer substituir -ainda que temporariamenteo- guilhotinas, "gulags" e "paredões" por "hegemonias" asfixiantes, que não matam corpos mas envenenam almas? Serão elas de caráter psicológico, psiquiátrico, legal, policial, físico, ou uma perversa combinação de todas elas?

O avanço, em numerosos países, de legislações que não só favorecem a chamada "diversidade sexual", mas que estabelecem penalidades contra os que a ela se oponham, acusando-os de "discriminação", sem importar que se baseiem em princípios morais e religiosos, pode ser um primeiro instrumento para dar à tal perseguição um ar jurídico e legal.

Nesta série de artigos sobre o 5º Fórum Social Mundial não seria possível deixar de colocar tão delicadas interrogações, diante de problemas que poderão afetar de modo decisivo o futuro da humanidade.

Mapa de vulnerabilidades

Por fim, como foi visto, esse avanço do processo revolucionário não é irreversível, ao ponto de que seus próprios protagonistas reconhecem dificuldades, de diversa ordem, que vão encontrando no caminho. Ao longo deste trabalho, ficou delineado o mapa das vulnerabilidades das esquerdas alter-globalistas, incluindo seus calcanhares de Aquiles. Existem possibilidades reais de ação doutrinal e publicitária, para denunciar esse processo desagregador diante da opinião pública mundial. Fica assim um convite a seguir o conselho de São Tomás de Aquino: ver, julgar e atuar, invariavelmente dentro do respeito das leis de Deus e dos homens. A Providência fará o resto.

Um Informe da Agência Destaque Internacional, Buenos Aires / Madri. Responsável: Javier González. Reportagens: Carlos Santa Cruz, Nestor Matihara, Flávio Fonseca, José Rafael Diniz e Francisco Javier Ferreira. Redação: Gonçalo Guimarães. Tradução do original em espanhol: Maria das Graças Arruda.