Fevr. 11, 2003: agência CubDest (3º artigo da Série Fórum Social Mundial 2003)
Fórum Social Mundial: Chávez e o "dilema" venezuelano
Até os mais próximos aliados do presidente venezuelano percebem que seu impopular governo encontra-se ante um arriscado "dilema" e, junto com ele, as forças de esquerda que a nível internacional o apoiam
O presidente Hugo Chávez, da Venezuela, em sua visita a Porto Alegre, durante o 3º Fórum Social Mundial, ameaçou passar à luta armada, seguindo os passos do guerrilheiro argentino-cubano "Che" Guevara: "Eu já guardei meu fuzil e não quero voltar a segurá-lo, porém lá o tenho guardado e se as oligarquias não aceitam as mudanças em paz, como disse o "Che" Guevara, ruídos de combate e rajadas de metralhadoras troarão", disse ante alguns milhares de seus partidários que o aguardavam em frente ao Palácio Piratini, sede do governo do Estado do Rio Grande do Sul.
O prejuízo ocasionado à imagem "anti-belicista" do FSM pela presença do incendiário e polêmico visitante, levou os organizadores a esclarecer que não lhe haviam feito um convite oficial. Mais ainda, quando seu governo pró-castrista, com metas e métodos de confrontação, está obtendo o rechaço crescente de boa parte dos venezuelanos.
Todavia, isso não impediu que Chávez recebesse o respaldo de figuras importantes do comitê internacional do tal evento, como Bernard Cassen e Ignacio Ramonet, diretores do Le Monde Diplomatique, considerados entre os fundadores do FSM e líderes de sua ala radical. Cassen elogiou como animadora para as esquerdas, a "vontade de resistência" dos governos de Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Lucio Gutiérrez no Equador e Fidel Castro em Cuba. Sobre o primeiro, disse que "despertou 80% do povo venezuelano" que hoje "se organiza nos 'círculos bolivarianos'", algo "intolerável para as classes médias e altas". E proclamou demagogicamente que as manifestações chavistas seriam duas vezes maiores que as anti-chavistas, fenômeno que, segundo ele, é ocultado pelos meios de comunicação venezuelanos, aos quais acusou de "golpistas" e de incentivar uma "guerra civil".
Figuras da chamada ala radical do governante Partido dos Trabalhadores, do Brasil, presentes no Fórum Social Mundial e no simultâneo Fórum Parlamentar Mundial, também apoiaram a presença de Chávez. Foi o caso do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, que a qualificou de "muito positiva"; de deputados federais como Milton Temer e João Batista Oliveira, Babá; de deputados estaduais como Raul Pont e Luciana Genro; e do prefeito de Porto Alegre, João Verle.
De Havana, em um discurso televisionado no qual elogiou o FSM, o ditador comunista Fidel Castro deu instruções à nutrida delegação cubana para "denunciar a ofensiva imperialista e fascista contra a revolução bolivariana da Venezuela".
Todavia, até os mais próximos aliados de Chávez percebem que seu impopular governo encontra-se ante um arriscado "dilema" e, junto com ele, as forças de esquerda que a nível internacional o apoiam. Assim manifestou-se o chanceler cubano Felipe Pérez, que viajou a Porto Alegre acompanhando Chávez, ao explicar que o desenlace desse "dilema" poderá ter grandes consequências políticas: se Chávez fosse derrotado, "seria um retrocesso histórico" de enormes proporções para o continente. Com esta declaração fez-se eco da advertência feita em Porto Alegre pelo próprio presidente venezuelano: "Do resultado do processo que ocorre na Venezuela, depende o futuro da América Latina".
Sobre o suposto apoio majoritário do povo venezuelano a Chávez, alegado por este e por Cassen, poucos sabem que nas 5 eleições e referendos constitucionais efetuados entre dezembro de 1998 e julho de 2000, a votação governista oscilou entre 2,8 e 3,7 milhões, o que representa respectivamente 26% e 35% dos 11 milhões de pessoas registradas para votar. Essa limitação, que foi cuidadosamente silenciada pelos chavistas, pode ser uma das principais razões pelas quais o presidente venezuelano mostra-se contrário a adiantar as eleições solicitadas pela oposição.
Por fim, as divergências entre dirigentes do FSM, em torno da presença de Chávez, não se devem tanto a seus objetivos socialistas, que praticamente ninguém dentre eles põe em discução, mas a seus métodos de confrontação. Estas divergências correspondem aos "bastidores" e à atual "luta de poder" no seio do FSM entre "reformistas" e "grupos radicais vinculados à extrema esquerda", importante fenômeno ao qual se referiu o jornalista Gérard Desmedt, da revista da "esquerda católica" francesa La Vie. Com efeito, a resolução dessa luta em um sentido ou outro, poderá definir os rumos do processo revolucionário em países como Venezuela, Brasil e Cuba.
Historicamente, a política de confrontação levada a cabo por setores radicais de esquerda, tem despertado reações inclusive entre setores indolentes e pacatos da opinião pública internacional. Trata-se de consequências prejudiciais para o processo revolucionário, fruto do "voluntarismo", tal como o denominou Lênin, um problema muito comentado no 3º Fórum Social Mundial. Em sentido contrário, o avanço da esquerda em velocidades mais lentas, com estratégias baseadas em palavras-talismânicas como "diálogo", "consenso", "paz", "amor", etc., teve e tem nestes momentos um poder anestesiante capaz de fazer aceitar ousadias revolucionárias que, se fossem aplicadas bruscamente, despertariam rechaços, polêmicas e até convulsões no corpo social.
Apesar de sua capacidade de articulação e poder, as esquerdas parecem avançar pisando em ovos na Venezuela, Brasil, Equador e outros países. É sintomática, neste sentido, a advertência de Frei Betto, um "teólogo da libertação" brasileiro e alto assessor de Lula, que esteve presente junto a este no 3º FSM: "A esquerda já não suporta mais fracassos", "o próprio Lula disse que não podemos fracassar, ele falou dos casos da esquerda na Polônia, na Nicarágua, no Chile... propostas populares, progressistas, que por diversos fatores foram abortadas".
Tradução: Graça Salgueiro